O mundo em que vivemos é de difícil compreensão. Nele existem uma gama de vontades que se sobrepõe a coletividade, trazendo instabilidade e a perca de rumo pelas pessoas.
“Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados... Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com fatos que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente brilhantes quanto as informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia.”
Dentro desse contexto de
anestesia da vida e a falta de propósito num mundo marcado pelo consumo e perda
das relações sociais, eis que temos o livro Fahrenheit 451, no qual Ray
Bradbury já nos alertava sobre os riscos dos caminhos que estávamos seguindo.
Publicado originalmente em
1953, em plena Guerra Fria, e redescoberto mais recentemente graças ao
relançamento pela editora Biblioteca Azul, a obra é uma crítica aos regimes
políticos opressores do século XX e um alerta sobre as transformações sociais
capitaneadas pela televisão.
Na trama somos apresentados a
Montag, bombeiro responsável por queimar livros. Sua rotina é insignificante –
atuando no trabalho de forma mecânica e com uma relação distante com a esposa e
colegas de trabalho; ele tem a vida mudada, graças ao encontro com a jovem
Clarisse, que em um breve diálogo, planta a semente que o fará questionar toda
a forma de viver e as regras impostas na sociedade em que mora.
A leitura do Fahrenheit 451
não é muito fluída, por conta de uma linguagem um tanto filosófica e cheia de
simbolismos, que exige muitas pausas para reflexão. Também é um livro rico de
significados e que traz um retrato do mundo em que vivemos com uma precisão
assustadora, o que nos convidará a olhar para a nossa própria vida e nos
questionar se estamos felizes com os caminhos que escolhemos e se as nossas
relações de fato são assertivas.
A ambientação da história é
simples, mas muito impactante. A ousadia em propor um mundo no qual bombeiros
são responsáveis por atear fogo em livros é de uma ruptura, que por si só,
releva o quando esse mundo está doente e clama por socorro.
“Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas da história. Na cabeça impassível, o capacete simbólico com o número 451 e, nos olhos, a chama laranja antecipando o que viria a seguir, ele acionou o acendedor e a casa saltou numa fogueira faminta que manchou de vermelho, amarelo e negro o céu do crepúsculo.”
Os personagens também cumprem com
louvor os seus papeis; seja o Montag, o funcionário modelo, que age sem pensar;
o Beatty, o chefe que acredita ter todas as respostas, quando é apenas uma peça
numa engrenagem muito maior; Mildred, a esposa consumista e que se anestesia em
futilidades; e por fim Clarisse e Granger, a dicotomia do passado e do
presente, os jovens que questionam e os velhos que tem a sabedoria de entender
o tempo de cada um.
Fahrenheit 451 é uma obra
atemporal e necessária, por nos revelar a verdade do nosso tempo e nos convidar
a refletirmos sobre nosso modo de viver. Um livro que mostra a importância do
passado, para construirmos um presente e almejarmos um futuro com mais
propósito e significado. Uma obra para ser revisitada em muitos momentos, pois
guarda em suas páginas ensinamentos fundamentais que são impossíveis de serem
aprendidos em uma única leitura.
“Dizem que sou antissocial. Não me misturo. É tão estranho. Na verdade, eu sou muito social. Tudo depende do que você entende por social, não é? Social para mim significa conversar com você sobre coisas como esta... Ou falar sobre o quanto o mundo é estranho. É agradável estar com as pessoas. Mas não vejo o que há de social em juntar um grupo de pessoas e depois não deixá-las falar, você não acha? Isso para mim não é nada social... Deixam a gente tão atormentada ao final do dia que não podemos fazer nada além de ir para a cama ou a um parque de diversões para importunar os outros, quebrar vidros ou destruir carros... Acho que sou tudo o que dizem... Não tenho amigos. Isso é o bastante para provar que sou anormal. Mas todos que conheço estão gritando ou dançando por aí como loucos ou batendo uns nos outros. Você já notou como as pessoas se machucam entre si hoje em dia?”
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