domingo, 26 de dezembro de 2021

Resenha | Cartas Para a Minha Avó (Djamila Ribeiro)

 

Para muitos de nós, a avó é a figura que personifica o amor. É ela quem acolhe, nos defende, nos mima e acima de tudo, compartilha conosco uma cumplicidade que é difícil de explicar. Pela intensidade dos nossos sentimentos em relação as vós, terminamos acreditando que o tempo se torna infinito e as despedidas, nem sempre são possíveis e/ou suficientes para quem fica.

Dentro desse contexto, Djamila Ribeiro abre seu coração no livro Cartas para Minha Avó e de forma muito emocionante, narra suas memórias, dúvidas, anseios, fragilidades e reflexões, para sua avó, D. Antônia.

“Essa imagem de mulher negra forte é muito cruel. As pessoas esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado e a iniciativa privada são omissos e violentos. Restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas?”

Lançado pela Editora Companhia das Letras, Djamila Ribeiro nos apresenta a história da família narrando desde sua infância até a atualidade, quando já é uma das intelectuais mais reconhecidas do Brasil. Ao longo da narrativa, surgem reflexões sobre temas como racismo, ancestralidade, masculinidade tóxica, entre outros.

A leitura da obra é muito fluída e a todo momento nos sentimos que estamos é uma conversa entre amigos. A escrita mostra a coragem de quem atingiu a maturidade que a vida traz e a sabedoria de quem soube acolher tanto as dores quanto as alegrias da própria história, para que pudesse crescer.

Diferente de muitas biografias que vemos no mercado, Cartas para a minha vó vem carregada de reflexões sobre os mais variados assuntos. O racismo é debatido e aparece em muitos momentos na vida da autora, assim como a importância da representatividade e a necessidade de rever as práticas educativas e as mídias como forma de combater essa cultura criminosa.

“Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se propaga impedindo a gente de ser, somente ser.”

O feminismo é outro tema muito presente, e aparece junto a reflexões sobre casos de assédio, a visão social da mulher negra como símbolo de puro desejo sexual e ainda a objetificação da mulher.

“Passamos a vida culpando as mulheres que nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta. São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para alimentar toda a aldeia.”

Em um dos capítulos mais delicados, a Djamila reflete sobre a maternidade e fala com franqueza sobre como foi difícil para ela os primeiros anos como mãe.

“Algumas mulheres me achavam louca por não me sentir preenchida com a maternidade e a vida de casada. Amava ser mãe ..., mas detestava o que se entendia por maternidade: a abdicação da nossa existência como sujeito.”

Por fim e de forma mais intensa, cabe destacar a Ancestralidade e que vem acompanhada com a religião do Candomblé, que sempre foi algo presente na vida da família.

”São muitos os obstáculos, as porradas que a gente toma por “ousar” sair do nosso lugar, e nada foi fácil. Apesar de receber muito carinho e ser reconhecido pelo que faço, perceber o afeto daquelas mulheres foi diferente. Foi como me reencontrar com uma história da qual fui apartada. Foi como se elas estivessem me aceitando de volta com os braços abertos, me perdoando. Ali, eu me senti reconectada com uma ancestralidade perdida, uma espécie de volta para casa. Quando aqueles rostos negros se emocionavam por me ver ali, expectadora delas, eu senti vontade de chorar. Os abraços e apertos de mão continham a benção que as mais velhas dão às mais novas, como eu sempre pedia a você e à minha mãe antes de dormir. Elas se emocionavam porque se sentiam representadas pelo trabalho que eu faço. Sim, eu me emocionava com o reconhecimento delas, mas também por sentir que parte da minha história havia sido restaurada.”

Cartas para minha vó é uma obra com uma força muito grande pela relevância dos assuntos abordados e, também, por possibilitar que ao visitarmos a biografia de nossas referências, a gente desperte nosso olhar para acolhermos a nossa própria história e assim chegarmos a maturidade e sabedoria de quem pode ajudar novas gerações a se encontrarem no próprio caminho.


Citações | Cartas Para a Minha Avó (Djamila Ribeiro)


  • "Eu jamais esqueceria meus amores primeiro, mas era preciso uma canção cantada com ternura para me lembrar que eles precisam ser eternizados sem dor em demasia. Como essa dor será carregada para sempre, ela não pode nos fazer afundar e esquecer as memórias felizes.” – 14 e 15
  • “Essa imagem de mulher negra forte é muito cruel. As pessoas esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado e a iniciativa privada são omissos e violentos. Restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas?” – 15
  • “Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se propaga impedindo a gente de ser, somente ser.” – 24
  • “Minha mãe teve suas asas cortadas por muitas tesouras, e dizer a ela que a compreendíamos foi como fazer um pedaço se colar.” – 58
  • Passamos a vida culpando as mulheres que nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta. São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para alimentar toda a aldeia.” – 65
  • “O racismo também tem dessas: afasta as pessoas negras das culturas que elas mesmas construíram.” – 118
  • “São muitos os obstáculos, as porradas que a gente toma por “ousar” sair do nosso lugar, e nada foi fácil. Apesar de receber muito carinho e ser reconhecido pelo que faço, perceber o afeto daquelas mulheres foi diferente. Foi como me reencontrar com uma história da qual fui apartada. Foi como se elas estivessem me aceitando de volta com os braços abertos, me perdoando. Ali, eu me senti reconectada com uma ancestralidade perdida, uma espécie de volta para casa. Quando aqueles rostos negros se emocionavam por me ver ali, expectadora delas, eu senti vontade de chorar. Os abraços e apertos de mão continham a benção que as mais velhas dão às mais novas, como eu sempre pedia a você e à minha mãe antes de dormir. Elas se emocionavam porque se sentiam representadas pelo trabalho que eu faço. Sim, eu me emocionava com o reconhecimento delas, mas também por sentir que parte da minha história havia sido restaurada.” – 121
  • “... há mãos que condicionam nossas vidas antes de nascermos, coloca sobre nós um imperativo categórico de submissão e competição...” – 129
  • “A importância à frase quem deu foi ela, foi ela que transformou em sonho palavras corriqueiras ditas num dia quente e fez delas um compromisso firmado para a vida inteira... Uma vida de eterna espera, da crença no homem que pode ser mudado por amor.” – 131
  • “A arrogância masculina faz com que se negue ou menospreze tarefas que são fundamentais.” – 132
  • “Algumas mulheres me achavam louca por não me sentir preenchida com a maternidade e a vida de casada. Amava ser mãe ..., mas detestava o que se entendia por maternidade: a abdicação da nossa existência como sujeito.” – 146
  • “... naquele momento, aplaudindo efusivamente ao final de cada música, não existia mais expectativa, havia entrega. Eu não precisava fingir autenticidade, eu simplesmente podia sentir, deixar sair pelos meus poros todas as situações de angústia por não saber qual caminho seguir, deixar escorrer toda mágoa das coisas que não haviam sido, cada ressentimento pelas situações de solidão. Por um breve momento, olhei para o passado sem nostalgia, somente como contingências que me traziam ao agora. Quando ouvi a banda tocar uma canção de amor, me emocionei, mas não de tristeza por amores do passado ou por situações mal resolvidas no meu casamento. Foi um choro de alívio por eu, apesar de todas as pedras no caminho ou as pedras que me atiraram, não ter desistido de mim para poder estar ali, naquele lugar... Aquela mulher de trinta e quatro anos se sentiu plena, como se as asas agora não precisassem mais ser coladas; elas sempre estiveram ali aguardando o momento do voo.” – 170 e 171

domingo, 19 de dezembro de 2021

Citações | As Desolações do Recanto do Demônio (Ransom Riggs)

 


  • "Às vezes, uma velha fotografia, um velho amigo ou uma velha carta ajudam a lembrar que você não é o mesmo de antes. Aquele que morava entre aquelas pessoas e valorizava isso, escolhia aquilo, escrevia de tal jeito não existe mais. Sem perceber, você percorreu uma grande distância. O estranho virou familiar, e o familiar, senão estiver estranho, é no mínimo desconfortável.” – 7
  • “Quantas pessoas passariam a vida entre sombras e fantasmas, se tivessem a chance? Todo pai que perdeu um filho, todo amante que perdeu seu par. Se tivesse a escolha, a maioria faria o mesmo, não? Somos todos esburacados, e em alguns dias eu teria feito qualquer coisa para tapar meus buracos, mesmo que só por um tempo. Ficava feliz por não ter essa possibilidade...” - 322

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Resenha | A Vida Nunca Mais Será a Mesma (Adriana Negreiros)

A história da formação das sociedades humanas, sempre foi marcada pela violência e por imposição de um grupo sobre outro, características de relações marcadas pela busca de controle e de poder. Entre os grupos que, historicamente, sofrem com todo tipo de agressão e lutam para terem seus direitos assegurados estão as mulheres.

As mulheres, em variados momentos da história, quase sempre tiveram seus direitos e vontades negadas e por viverem numa sociedade patriarcal, na qual o machismo se faz presente, eram vistas como simples mercadorias/ enfeites.

Ainda hoje, apesar de todos os avanços, continua sendo comum vermos crimes contra as mulheres – assassinatos, violências sexuais, abusos psicológicos, entre outros. É neste contexto que a autora Adriana Negreiros, lança o seu livro A Vida Nunca Mais Será a Mesma, pela editora Objetiva.

A autora mostra grande coragem ao revisitar um dos momentos mais trágicos de sua vida, quando sofreu um estupro, e a partir disso discute os avanços legislativos/judiciários do combate a violência contra as mulheres no Brasil e no mundo. Também vale destacar a sensibilidade da escritora em dar voz a outras mulheres que também sofreram com uma série de violências, o que contribui para tornar o livro ainda mais enriquecedor e importante no trato da temática.

Em um estupro, quando a mulher é submissa e faz tudo o que o estuprador manda, na verdade ela está lutando com ferocidade. Porque sabe, de forma intuitiva, que lutar contra o pavor, o nojo, a dor e a humilhação é talvez a única maneira de escapar da morte, e o medo de morrer se impõe a todos os outros. Não lutar corporalmente e, em vez disso, ceder, ser até simpática e cordial com o bandido pode parecer um comportamento covarde e complacente, mas no fundo é um ato de valentia.

A leitura da obra A Vida Nunca Mais Será a Mesma é muito difícil, pelos inúmeros gatilhos e pela brutalidade de alguns relatos, o que provoca no leitor um sentimento de revolta, repulsa e pesar. É possível perceber o importante trabalho jornalístico feito pela autora, que além de apontar dados estatísticos sobre a questão da violência no Brasil e destacar os avanços que os grupos que lutam contra a violência à mulher têm conseguido no âmbito jurídico – uma destas conquistas foi a criação das Delegacias para Mulheres, em 1985.  Também consegue dar voz a algumas sobreviventes desses crimes, mostrando a importância e o protagonismos delas nessas conquistas e no resgate de novas vítimas.

A violência contra a mulher continua sendo um grave problema da sociedade, com índices altíssimos de feminicídio – termo usado pela primeira vez em 1976, durante o Tribunal Internacional de Crimes contra as mulheres, pela socióloga Diana Russel. Assim, a literatura se torna uma importante aliada para o combate desse problema, pois é através da informação que a população poderá se conscientizar e buscar apoio cada vez mais cedo – seja de segurança, ou psicológico.

Lidos | Novembro 2021

Lidos Novembro

Fala, pessoal! Mais um mês se finda e com ele não trago muitas indicações de leituras para vocês. Por motivos profissionais e de estudo, terminei não conseguindo conciliar meu tempo e terminei com um único livro lido, A Vida Nunca Mais Será a Mesma.

Vamos a ele:

A Vida Nunca Mais Será a Mesma (Adriana Negreiros, Objetiva)



- Sinopse:

Por muito tempo, o estupro foi tratado de forma obscura, aos sussurros, como tabu ou excentricidade. E mais, foi extremamente resistente o pensamento de que as mulheres também eram culpadas pela agressão sexual que sofriam. No Brasil, um dos países com maior taxa de feminicídios do mundo, sensibilizar e alertar a sociedade para essa violência – não apenas a real, como também a simbólica – é algo urgente.

Em A vida nunca mais será a mesma, Adriana Negreiros discute a cultura da violência e o estupro no Brasil em suas mais variadas formas e expressões. Do delicado tema do abuso sexual de crianças por familiares ao estupro no casamento, chama a atenção o fato de que a agressão contra a mulher não se dá apenas no espaço público – os lares podem ser ambientes igualmente opressores, apartados da interferência do Estado.

Alternando depoimentos em primeira pessoa com casos verídicos de outras mulheres, noticiados na imprensa ou investigados por ela, Adriana constrói um livro tocante e, ao mesmo tempo, elucidativo.

- Motivos para ler:

A obra é um relato sensível e corajoso da escritora-jornalista Adriana Negreiro. Tomando de partida um estupro sofrido por ela, Adriana embarca numa investigação sobre a legislação brasileira para desvendar e discutir a problemática da violência contra a mulher. Ela ainda apresenta, pelas vozes das próprias vítimas, as variadas formas de violência que existe e como esses crimes deixam marcas físicas e emocionais nas vítimas, que em muitos casos duram a vida toda.